A arte no contrário da utopia
Michael Leruth, professor do College of William and Mary, U.S.A.
Fred Forest é um artista que acredita na função utópica da arte. É
uma crença que ele afirma sem equívoco ao longo de sua carreira,
desde a arte sociológica dos anos 70, que preconiza a passagem
do "real" sociológico à "realidade"
epistemológica "pela ação utópica" [ 1 ] na forma
de acontecimentos "inter-subjetivos" realizados
através de midias "nao artísticas" (vídeo, imprensa,
televisão), até a arte "atual", onde o artista
age como " fundador de novas utopias" [ 2 ] instalando
"instrumentos antropológicos de prospectiva" no
centro do nosso ambiente "hipertecnológico" (Internet
por exemplo). É um utopista inveterado que liderou uma
passeata onde as pessoas brandiam cartazes brancos pelas
ruas de São Paulo sob os olhares da polícia política em
1973, que convidou as pessoas a se tornarem cidadãos livres
em seu "Território do metro quadrado" em 1980,
que passou na televisão búlgara em 1991, usando um par de
óculos rosa, para disputar o cargo de presidente da rede
nacional deste país (que não havia ainda deixado completamente
o estalinismo) preconizando uma televisão mais "utópica
e nervosa", e que acaba de desafiar o presidente muito
autoritário da Câmara Municipal de Nice em 2005 com um "Caminho
da Cruz" formado por estações, criadas em linha pelo
público, lamentando o destino da cidade sob sua tutela.
Ora, Forest é um utopista original por outras razões que
o simples fato de ter o atrevimento de desafiar todos os
poderes. Éle é pois nos mostra o caminho à arte utópica
além da famosa " condição postmoderna" "Ele
é sobretudo porque nas suas ações mais famosas o processo
utópico utilizado considera a utopia ao contrário.
Forest compreendeu que um verdadeiro processo utópico hoje em dia só
pode ter efeito no contrário da utopia porque o próprio
"lugar" da utopia se tornou inacessível. O dicionário
nos diz que a utopia é, no sentido etimológico, uma "ausência
de lugar" "Trata-se da ausência de lugar onde
colocamos em cena nossa idéia da sociedade perfeita."
Ela nasce no Quattrocento com a perspectiva e a possibilidade
corolária de nos projetar, à partir de um ponto suposto
fixo na realidade contingente, em um espaço puramente ideal,
onde as imperfeições do mundo real são corrigidas e nossos
"projetos" coletivos mais racionais, exatos e
progressivos podem se realizar... em princípio. A "Cidade
ideal" muito tempo atribuída à Piero della Francesca
é efetivamente a primeira utopia moderna na história da
arte. De acordo com Zaki Laïdi, o "momento decisivo
perspectivo" da civilização ocidental torna possível
a idéia moderna do progresso, que resulta da temporalização
da perspectiva, ou seja, de uma dupla projeção na utopia
(a ausência de lugar) e a heterocronia (o não-tempo): a
sociedade ideal que "se situa" num futuro quase
mítico, o dos amanhãs que cantam. [ 3 ] Infelizmente, o
próprio da "condição postmoderna" é tornar este
tipo de projeção impossível. Isso se explica de várias
maneiras. De acordo com Lyotard, é porque não acreditamos
mais nas grandes aventuras da modernidade (o Iluminismo,
o Progresso, a Revolução etc..) ; enquanto que para Virilio,
Laïdi e Maffessoli é também porque nós vivemos sob a influência
de um presente todo-poderoso, ou até mesmo tirânico. Em
outros termos, faltamos de fé e de tempo que a utopia necessita.
Ora, para compreender o processo de Forest, é sobretudo
a tese de Baudrillard que devemos ter em mente. De acordo
com este último, a fonte da nossa incapacidade utópica reside
no fato que "o espaço perspectivo", onde antes
pusemos em cena a socialidade do projeto utópico, foi substituído
por um "espaço de simulação", o das redes e das
telas, onde se expõe uma socialidade não convergente da
conexão anônima e onde a idéia de utopia, um simples vestígio,
se limita "à de uma disseminação total, de uma ventilação
dos indivíduos como terminais de informação" "[
4 ]" Trata-se da utopia "cibernética" de
um espaço virtual que se encontra simultaneamente em toda
parte (mundialização, ubiquidade) e em lugar nenhum (deterritorialização,
ciberespaço), onde todas as informações, que são perfeitamente
iguais umas às outras, pois o sentido se dissolve no símbolo,
se transmitem instantaneamente e circulam por toda a parte
na mais perfeita economia de esforço. Esta "utopia"
não tem nada a ver com um projeto pois se trata de um fato
realizado – a utopia realizada da êxtase da comunicação
- que faz doravante parte do nosso cotidiano.
Que quer dizer então agir "no contrário" da utopia neste
contexto? Enquanto que, no âmbito da ideia tradicional da
utopia tratava-se de se projetar fora do mundo real, num
espaço virtual, onde punha-se em cena a sociedade ideal,
trata-se doravante de agir dentro do espaço virtual da pseudo-utopia
da comunicação para pôr em cena um novo sentido do mundo
real. Não se trata de dar a ilusão do real no virtual e
ainda menos de fugir do virtual para reganhar o bom e velho
mundo real do qual temos saudade. Trata-se de recriar o
real a partir do virtual que nos cerca. Trata-se sobretudo
de um gesto verdadeiramente utópico pois o espaço virtual
da comunicação é tão inextricável quanto o espaço real da
contingência já foi, e que é necessário um salto da imaginação
suficientemente grande tanto para projetar um novo mundo
real quanto para se projetar na cena virtual da utopia à
partir da realidade contingente. Ora, no gesto utópico,
maneira antiga ou nova, não ha realmente oposição entre
o real e o virtual pois um continua sendo uma projeção do
outro.
Em
termos concretos, Forest usa várias dimensões do espaço
virtual da comunicação que têm como efeito utópico de
tornar este espaço mais real, por mais que o seja de maneira
muito efêmera. Evoquemos aqui quatro entre as mais importantes
dessas dimensões utópicas. Em ações como "150cm2
de papel branco" de 1972 e "O branco invade
a cidade" de 1973, ele evita a armadilha da dissolução
do sentido na comunicação de massa evacuando qualquer
conteúdo específico para apresentar a pura possibilidade
da existência de um espaço público aberto ao dialogo –
um gesto utópico no caso do pequeno quadrado branco "interativo"
que ele publicou no jornal Le Monde e simplesmente
subversivo no caso da sua "falsa" manifestação
em São Paulo. Em ações como "Celebração do presente"
de 1985 (um trajeto de moto pelas ruas de Nápoles para
atender um telefone que toca na televisão) e "A torneira
telefônica" de 1992 (enchimento de um balde de água
a distância por via telefônica), Forest nos mostra de
maneira lúdica e poética que o espaço físico não é abolido
pelas telecomunicações (de fato, ele continua a ser indispensável),
mas "sublimado" por elas. Em outros termos,
a arte de Forest, utópica ao contrário, põe em cena um
espaço cuja "banalidade" é "transfigurada"
pela passagem dos sinais electrônicos. [ 5 ] Em ações
como "A conferência de Babel" de 1983 ou "Aprendam
a assistir televisão com seu rádio" de 1984, ele
oferece ao público interfaces alternativas que lhes permitem
reconquistar temporariamente o "território"
ocupado pelos que controlam as midias. Este território
volta a ser real para os participantes simplesmente pelas
co-presenças no meio concebido como comunidade utópica
efêmera instituída por uma ocupação do espaço electrônico.
Enfim, em ações em linha como "Paro o tempo"
de 1998 (uma volta do mundo por webcam onde a hora de
meio-dia se repete de maneira ininterrúpta durante 24
horas) e "O centro do mundo" de 1999 (uma instalação
em volta da relíquia numérica do centro perdido do mundo
onde se podia fazer uma peregrinação em pessoa ou em linha),
Forest se instala no tempo ritual para pôr em cena suas
intervenções, e "consagra" um espaço que nao
é real nem virtual mas, justamente, é a fronteira entre
os dois, uma fronteira cuja travessia nos faz entrar num
estado subjuntivo coletivo que torna todas as utopias
possíveis [ 6 ]
Considerada
ao contrário como é feito nas obras de Fred Forest, a
utopia volta a ser uma realidade e a arte reencontra por
esse meio uma verdadeira uma função social ética.
[1] Fred
Forest, « Réflexions sur l’art sociologique »
em Art sociologique : dossier
Fred Forest (Paris: 10/18-U.G.E.,
1977) : 62.
[2] Fred
Forest, Pour un art actuel : l’art à l’heure d’Internet
(Paris : L’Harmattan, 1998) : 254.
[3] Ver
Zaki Laïdi,
Le sacre du présent (Paris:
Flammarion, 2000) : 43-97. Ver também
Olivier Grau, Virtual Art : From
Illusion to Immersion (Cambridge, MA : MIT Press,
2002).
[4] Jean
Baudrillard, A l’ombre des majorités silencieuses, ou
la fin du social (1978 ; Paris : Denoël-Gonthier, 1982) : 88.
[5] Ver
Arthur Danto, La transfiguration
du banal (Paris : Seuil, 1989). Ver também Mario Costa, Il sublime technologico
(Naples : Edisud, 1990).
[6] Ver
Michael F. Leruth, « From Aesthetics to Liminality :
The Web Art of Fred Forest », Mosaic
37.2 (June 2004) : 79-106.